Juíza Ângela C.M. Rodrigues | Cape Verde

Cape Verde

Sou Ângela Rodrigues, Juíza Criminal em exercício de funções como juiz de instrução e juiz de julgamento junto do Tribunal Judicial da Comarca da Praia, Cabo Verde.

Antes de mais gostaria de agradecer a organização deste evento de grande relevância no combate ao trafico de pessoas pela oportunidade de poder representar o meu país, e, em particular, gostaria de agradecer a senhora Presidente Susana Medina pelo convite que me formulou para participar neste evento, finalmente, não posso deixar de manifestar a grande honra poder compartilhar este tema com tão ilustre plateia de mulheres que se engajam no combate ao tráfico de pessoas e à criminalidade organizada exercendo as suas profissões com esmero, determinação e profissionalismo.

I. Breve Resenha História
Cabo Verde é um arquipélago de 10 ilhas, situado a 570 km da Costa Ocidental Africana, ocupando, assim, uma posição geográfica num triângulo entre três continentes (América, África e Europa), cuja população total do país, em 2016, foi determinado em 531.238 habitantes, sendo que 264.951 do sexo feminino e 266.287 do sexo masculino. Cabo Verde se tornou um país independente a 5 de julho de 1975 e a 13 de janeiro de 1991 tornou-se num estado de direito democrático, com realização de eleições multipartidárias, e a 25/09/1992 foi promulgada a primeira constituição da República do estado de direito democrático, consagrando direitos fundamentais dos cidadãos, entre os quais o direito à reserva da intimidade da vida privada.

Durante quase 30 anos de independência vigorou no ordenamento jurídico-penal do C.P. Português de 1886, tendo, entretanto, sido legislada diversa matéria criminal em legislação avulsa, que melhor adequasse à sociedade cabo-verdiana ao desenvolvimento económico-social do país de um país independente e democrático. Destaque-se que desde sempre o legislador cabo-verdiano, assim como a ordem jurídica, nunca distinguiu e nem descriminou qualquer cidadão em razão do sexo ou género, posso assegurar que existe uma plena manifestação do inciso constitucional de que todos são iguais perante a lei nas diversas legislações existentes que abarcam as diferentes áreas do direito, nomeadamente o direito laborar, o direito de família e menores, e o civil.

Cabo Verde enquanto Estado-Membro da ONU assinou, em 2000, o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional, visando prevenir, suprimir e prevenir o tráfico de pessoas em particular de mulheres e crianças.

Em 2004 foi aprovado o Código Penal cabo-verdiano (posteriormente alterado em 2015) em que foram tipificadas diversas condutas delituosas que atentassem contra a dignidade da pessoa, contra a autodeterminação e determinação sexual, com punições neste tipo de crime severas. Realço o avanço legislativo no domínio da proteção das vítimas de violência que ponham em causa a efectiva igualdade de género, com a aprovação da Lei n.o 84/VIII/2011 de 11 de janeiro foi tipificado o crime de violência baseada no género, destacando deste modo a proteção, principalmente, de mulheres vítimas de agressores homens com quem tiveram ou mantêm alguma relação amorosa, e cuja agressão decorre da desigualdade e na manifestação de superioridade em razão do género, abrangendo diversas situações que não tinham uma cobertura legal típica e especifica. Outrossim deve-se realçar que a alteração do Código Penal (em 2015) veio a agravar as molduras penais dos crimes sexuais cometidos contra menores de 14 anos, que sejam vítimas de abusos e agressões sexuais, em que os condenados dificilmente, salvo raras exceções de atenuação da pena, não beneficiarão do instituto da suspensão de execução da pena.

Em 2015 foi instituído o Plano Nacional de Igualdade de Género 2015-2018 cujo objetivo é contribuir de forma integral à promoção da igualdade de direitos, deveres e oportunidades para homens e mulheres e ao empoderamento das mulheres.

II. Do crime de tráfico de pessoas
E com a reforma do Código Penal em 2015 foi tipificado o crime de tráfico de pessoas, no artigo 271o-A, em que é punido com a pena de 4 a 10 anos de prisão quem oferecer, entregar, aliciar, aceitar, transportar, alojar ou acolher pessoa para fins de exploração sexual, exploração de trabalho ou extração de órgãos, seja por meio de violência, sequestro ou ameaça grave; através de ardil ou manobra fraudulenta; com abuso de autoridade resultante de uma relação hierárquica ou aproveitando-se da incapacidade psíquica ou de situação de vulnerabilidade da vítima ou mediante a obtenção de consentimento da pessoa que tem controlo sobre a vítima.

Em igual pena (de 4 a 10 anos) é punido quem, por qualquer meio, aliciar, transportar, proceder ao alojamento ou acolhimento de menor, ou o entregar, oferecer ou aceitar, para fins de exploração sexual, exploração de trabalho ou de órgãos, e a pena é agravada para 6 a 12 anos prisão em caso de resultar algumas circunstâncias acima referidas ou atuar profissionalmente ou com intensão lucrativa.

Também é tipificada a conduta de quem, mediante pagamento ou outra contrapartida, oferecer, entregar, solicitar ou aceitar menor ou obtiver ou prestar consentimento na sua adopção, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.

É punido com pena de prisão de 1 a 5 anos quem tendo conhecimento da prática dos crimes acima descritos utilizar os serviços ou órgãos da vítima, se pena mais grave não lhe couber por outra disposição legal.

Quem retiver, ocultar, danificar ou destruir documentos de identificação ou de viagem de pessoa vítima de crimes supramencionados é punido com pena de prisão até 3 anos, se pena mais grave não lhe couber por outra disposição legal.

E, finalmente, destaca-se o n.o 5 do artigo 271o-A que dispõe sobre a proteção da vítima do crime de tráfico de pessoas, ao consagrar que a vítima de tráfico não será penalmente responsável por ter entrado ilegalmente em território nacional nem por ter participado, a qualquer titulo, em actividades ilícitas, na medida em que sejam consequência direta da sua situação de vítima.

Devo realçar o esforço institucional do Governo de Cabo Verde e dos Conselhos Superiores das Magistraturas em conjugação com o Escritório das Nações Unidas em Cabo Verde de proporcionarem ações de formação e de capacitação dos magistrados cabo-verdianos sobre esta temática, e desde de 2014 vem sendo realizadas ações de formação,[1] sendo a última ação de formação ocorreu no passado mês de junho na cidade da Praia dirigida a magistrados e agentes de investigação criminal.[2]

Seguindo a corrente internacional, o esforço nacional no combate ao tráfico de pessoas, Cabo Verde aprovou, no passado mês maio, o Plano Nacional Contra o Tráfico de Pessoas,[3] com validade por um período de três anos, e na decorrência da aprovação deste plano nacional, no passado mês de julho, foram empossados os membros o Observatório de Tráficos de Pessoas, integrado por dois magistrados judiciais e por instituições com sensibilidade e responsabilidades em matéria de combate ao Tráfico de Pessoas. O Observatório ora instituído é um órgão que se propõe em trabalhar em concertação com as diferentes instituições, de forma a se conhecer melhor as diferentes vertentes e as tendências do crime de tráfico de pessoas, para que com base nesse conhecimento seja possível melhorar a informação e a compreensão deste fenómeno e dos problemas sociais e económicos a ele associados. O Observatório foi estabelecido em parceria com a agência das Nações Unidas Contra as Drogas e Crimes e foi financiado pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos de América. Pelo que a criação deste Observatório se traduz num instrumento de acompanhar as manifestações criminosas que poderão surgir em Cabo Verde e trabalhar na prevenção destas condutas delituosas.

A necessidade de combater este fenómeno mundial é deste modo concretizado com a aprovação do Plano Nacional Contra Tráfico de Pessoas e com a criação do Observatório, apesar de Cabo Verde não ter sido considerado como país afetado pelo tráfico de pessoas, pela Avaliação da Resposta ao Sistema de Justiça Criminal ao Tráfico de Pessoas e Tráfico de Migrantes em Cabo Verde, realizada em 2014, realizada pela agência Nações Unidas Contra as Drogas e Crimes. Entretanto o Relatório sobre o Tráfico de Pessoas 2017, elaborado pelo Departamento do Estado Norte- americano chamou atenção à recolha de informações de que nas ilhas turísticas do Sal, da Boa Vista e de São Vicente existiam situações que poderiam configurar como tráfico de pessoas, nomeadamente na vertente de exploração sexual e prostituição. Para além destes casos também o referido relatório mencionou que foram identificados casos de possível tráfico de drogas, em que os comummente chamados “correios de drogas” ou “mulas” interceptados serem principalmente jovens de sexo feminino, de origem cabo-verdiana ou de nacionalidade brasileira.

Assim, estas manifestações criminosas que vão surgindo no país revelaram que durante o ano judicial 2017/2018 foram registados nos serviços do Ministério Público 3 processos referentes ao crime de tráfico de pessoas, juntando-se aos 4 transitados do ano anterior, perfazendo o total de 7 processos, que continuam pendentes.[4] Estes casos em investigação criminal reportam-se às duas ilhas de maior índice turístico, em que tem havido um aumento de migração de nacionais e emigrantes da costa ocidental africana, com as debilidades institucionais aumentam o risco de essas atividades criminosas se estabelecerem e se tornarem mais organizadas e escondidas de forma a evitar a acção da justiça, exigindo uma maior capacitação daqueles que combatem este fenómeno criminoso e a sua melhor compreensão a nível social.

III. Conclusão

Apesar da existência de números inexpressivos de processos crime sobre o crime de tráfico de pessoas, nota-se que o Estado de Cabo Verde, assim como as magistraturas judicial e do Ministério Público se encontram engajados no combate deste tipo de crime que põe em causa a paz social e a segurança coletiva. E este compromisso é assumido não só pelas instituições, mas também por mim.

Muito obrigada pela vossa atenção e um bem haja a todas.

 

 

[1] http://www.un.cv/arquivo-traficopessoas.php
[2] http://www.inforpress.publ.cv/dados-de-2017-revelam-quatro-casos-de-trafico-de-pessoas-em-cabo- verde-ministra-da-justica/
[3] Publicado no Boletim Oficial I série n.o 27 in https://kiosk.incv.cv/1.1.27.2515/
[4] http://www.ministeriopublico.cv/index.php/relatorios/send/6-relatorios/195-relato-rio-sintese-sobre- a-situacao-da-justica-ano-judicial-2017-2018